Dragagens no rio Sado
Em busca da Sociedade Esclarecida
A causa do fim do projeto
de melhoria das acessibilidades ao Porto de Setúbal é uma causa
colectiva na medida em que afecta positivamente ou negativamente toda
a comunidade. Os seus efeitos, positivos ou negativos, podem fazer-se
sentir em toda a região que tem o estuário do Sado no seu ventre.
Afecta as comunidades dos concelhos de Setúbal, Grândola e Alcácer do Sal em diversos graus e sentidos. Não pode ser restrita (a causa)
a Setúbal e aos seus habitantes. Poderemos ainda adicionar os
efeitos positivos e negativos nos concelhos adjacentes tais como
Palmela, Sesimbra, Montijo, Moita, Seixal, Almada ou Barreiro na
margem a norte do rio Sado integrantes da realidade geográfica que é
a Península de Setúbal. As conexões respeitantes aos concelhos limítrofes de Grândola e Alcácer do Sal serão talvez já mais
dissipadas nos efeitos aí produzidos. O processo de licenciamento
das obras obriga por isso ao envolvimento dos vários municípios. As
regras a que estão obrigadas as autoridades administrativas
imanentes do poder político local, os órgãos municipais
democraticamente eleitos, de divulgação do projecto eram inerentes
aos três municípios, sendo que a inacção responsabiliza aos três.
Poderá haver uma violação do direito a ser informado, detido pelos
munícipes, bem como uma violação da obrigação de informar que
cabe aos responsáveis pela gestão da coisa pública. Sem Informação
não há sociedade esclarecida e sem esclarecimento não é dada à
população a possibilidade de discutir seriamente o assunto.
As regras de publicitação
dos estudos de impacte ambiental parecem onerar o município de
Setúbal à publicação em edital do período de consulta pública
do projeto, o que foi feito, embora a meu ver, de forma, pouco
aceitável por não favorecer o referido esclarecimento público de modo eficaz e seguro. Não basta, não pode bastar, a publicação
de um edital para dar a conhecer à população os efeitos
de uma obra que se desenrola no coração da cidade, o rio Sado.
O caso pode ser encarado
como uma falha geral no sistema político, isto é, na gestão da
coisa pública que entregamos nas mãos dos nossos representantes
políticos. Claro que esta gestão implica ter em conta não só os
interesses públicos, os da população em geral quer seja a do
presente como a do futuro, como os interesses privados, os de
empresas e restante aparelho produtivo e administrativo. A montante
de cada novo projecto existem direitos concedidos a entidades
particulares que tem de ser balanceado com o bem maior que é o do
interesse humano e ambiental. A defesa de um não elimina a existência do outro e num estado de direito poderá por vezes dar-se
o caso de direitos adquiridos previamente terem de ser recompensados
por uma perda futura espectável.
Os portos e a sua gestão
são um bom exemplo de conflito entre diversos interesses. A
administração dos portos está entregue a entidades de direito
privado. Aos portos está associada por norma uma área circundante
por questões estratégicas ( e outras como de segurança pública,
integridade territorial, ou ainda ecológica). No entanto essa área
está em primeiro lugar inserida num determinado município. A gestão
e planificação dos diversos interesses está registado nos planos
directores municipais, PDM. Estes obedecem a regras de discussão e
aprovação bem claras ainda que muito pouco conhecidas pela
generalidade dos cidadãos. Fica claro que os cidadãos devem desde
cedo tomar parte nessa discussão.
As riquezas naturais que
enquadram a cidade de Setúbal e que os Setubalenses têm o privilégio de viver como seu ambiente natural são de valor
incalculável. As áreas protegidas, na Serra da Arrábida, no
estuário do Sado, incluindo ainda a Costa Alentejana e Vicentina
criaram uma relação homem-meio-ambiente que se desenvolve desde
sempre de forma cooperativa. Da natureza aprenderam os habitantes da
região a extrair o melhor que lhes foi oferecido. Peixe, Sal, vinho,
arroz, marisco...
Desde tempos que recuam ao
Paleolítico e que continuaram com Fenícios, Romanos, Árabes ou
Cristãos, que as riquezas naturais atraíram à região gente vinda
de longe, por vezes mesmo de muito longe.
Em Alcácer do Sal é
possível constatar o decorrer do tempo plasmado no acervo da cripta arqueológica do Castelo. Num pequeno quadro
exibe-se uma riquíssima colecção de moedas encontradas nas diversas
escavações efectuadas na cidade e arredores e nele é possível ver
uma pequena moeda com a gravura de um golfinho.
As notas de euro por exemplo saem ainda das rotativas sem imagens de Reis, presidentes
heróis ou monumentos históricos. Quem tem memória do escudo
lembra-se por certo de uma torre de Belém, ou de um Gago Coutinho,
Bocage, Camões, entre outras figuras. Será que, à data da cunhagem
daquela pequena moeda, alguém achou que um golfinho era o melhor
símbolo para identificar a região? Que honra para os Golfinhos!
Os Setubalenses e amantes
da região sentem e com razão uma forte ligação afectiva ao meio
ambiente que os rodeia ou que lá os atrai. Para além do peixe
assado que desde há décadas atrai Lisboetas aos restaurantes da
cidade, existe também, para alguns privilegiados, a Arrábida, e
mais concretamente o Portinho da Arrábida. As barracas de praia dos
pescadores foram facilmente arrasadas nos tempos de Carlos Pimenta,
por entre segundas habitações de férias. Para alguns ficaram as
casas quase secretas no meio da mata, algumas detidas por gente de
fora. No entanto, a Serra é respeitada. Há uma zona que devido à
sua riqueza vegetativa está completamente vedada á intrusão pelo
homem. Trata-se de uma reserva integral constituída por mata e
vegetação original mediterrânica. O seu valor é reconhecido por
todos e a sua integralidade respeitada.
No coração da Arrábida
instalou-se, faz décadas, uma fábrica de cimento e por lá irá
continuar por várias décadas ainda. A sua licença para extracção
de calcário, ou seja, para esventrar a serra foi recentemente
prolongada por mais 50 anos. Devido à presença da Secil na Serra da
Arrábida e por o processo de produção implicar o recurso a fornos
de altíssimas temperaturas foi decidido ali instalar a
co-incineração de matérias perigosas. Não aconteceu sem uma forte
oposição da população local, a de Setúbal e a da Arrábida, mas
e apesar disso, a decisão foi mais uma vez avante.
Qual é o impacto na saúde
pública dos setubalenses? Existem estudos sobre a incidência de
doenças do foro respiratório ou outras que assegurem a continuação
de tal prática sem risco para quem ali vive e que permitam avaliar
ainda que à posterior a decisão política tomada à época? Foram
os seus resultados dados a conhecer publicamente?
Foi de resto por causa da
existência da co-incineração na Arrábida que o porto de Setúbal
se tornou no destino para resíduos provenientes de outros países
europeus dada a existência de um mercado interno de resíduos..
Os estaleiros navais da
Setenave, agora Lisnave, são um dos maiores a nível mundial na
capacidade de reparação de navios. A história dos estaleiros e das
restantes empresas ali instaladas nas décadas de 60 e 70 do século
passado revelaram-se decisivas, dada a fonte de contaminantes químicos
lançados para o estuário, para o desaparecimento dos Golfinhos do estuário. Durante anos, a comunidade de golfinhos foi-se simplesmente embora do estuário que usa e sempre usou para sua residência,
maternidade e porto de abrigo. Os contaminantes presentes no fundo do
rio são, tristemente, parte do património industrial de Setúbal e
bem poderiam ter lugar a evocação no museu do trabalho.
A relação que se
estabeleceu já num passado longínquo entre homem e meio ambiente e
talvez em primeiro lugar entre golfinhos e o estuário deverá ter
tido por base uma natureza de índole mais cooperativa do que
competitiva. É esta relação de forças que sempre se estabelece
entre dois modos de habitar um ecossistema tão variado e rico que
determina não só o presente como também o futuro. O legado que
quisermos deixar para quem vier depois de nós será sempre um
reflexo das decisões políticas tomadas hoje, em nosso nome, tendo
em mente os interesses da comunidade. Dependerá sempre do grau de
esclarecimento da população local a aceitação ou reprovação de
projectos que, tal como o da melhoria das acessibilidades ao porto de
Setúbal, lhes são impostos.