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domingo, outubro 09, 2011

O Sol em Portugal


O Sol em Portugal.


por Sandro Cândido Marques a Sexta-feira, 20 de Maio de 2011 às 13:31

A imagem exterior de Portugal é ainda a de um país pobre, de gente que não quer trabalhar, gosta de vinho e barriga ao Sol. Mesmo a canção "A Luta é Alegria", foi vista como um exemplo da miséria nacional. No Facebook circulava uma causa a apelar ao voto nos HdL como forma de apoiar a pobreza. O sarcasmo europeu é imune a ideais de revoluções baseadas em cantigas. O que conta é o pedido de ajuda externa e isso é visto como o sinal do nosso atraso e da nossa miséria histórica.

A verdade é que somos o mesmo país pobre que sempre fomos. As gentes e a cultura são a nossa única riqueza. O capital humano e social só pode ser valorizado se continuarmos a apostar em políticas que o valorizem, e quebrem de vez com a espiral de empobrecimento a que estivemos condenados até 1974.

A gastronomia, as praias, os tesouros naturais, fazem de nós um dos povos que maiores índices de felicidade apresentam. Podemos ser pobres mas aquilo de que dispomos oferece-nos ainda assim uma excelente qualidade de vida. A aposta no Turismo como fonte de receitas mostra que o nosso tesouro só assim é exportável. Na verdade a imagem que constato haver de Portugal é a um sítio junto a Espanha, que não compete com as delícias mediterrânicas da Grécia, Turquia ou Chipre, e em todo o caso a de um país pobre e pouco atractivo. Claro que há quem saiba mais do que isso, mas não são a maioria.

Quanto ao resto, só com uma boa base educacional podemos vencer noutros sectores que competem a nível global, como de resto vai acontecendo em pequenos nichos. Os dois maiores grupos económicos liderados por portugueses, SONAE e AMORIM, não se baseiam em grandes apostas na investigação. Baseiam-se sim na única aposta que era interessante para eles, a mão-de-obra barata. A indústria conserveira que ainda resta foi deslocalizada para o norte de África, o resto foi afundado, desertificado e abandonado por não ser mais competitivo. Quando em 1986 aderimos à C.E.E. a nossa vantagem competitiva era a mão-de-obra barata, devido ao atraso na formação, herdado do passado. Termos vivido 48 anos em Ditadura, quando todo o mundo se desenvolvia e dava saltos qualitativos deixou-nos muito para trás. A única vantagem de que dispúnhamos para competir num mercado aberto e livre, o espaço económico europeu, esfumou-se quando países como China, Índia, Bangladesh, Indonésia, entre outros entraram na competição. Basta ir ver as etiquetas da roupa e sapatos que usamos e percebemos que as, ainda, marcas europeias, deslocalizaram as suas produções para outros competidores. A vantagem deles: mão-de-obra barata.

Se passamos a última década com crescimentos anémicos, como poderíamos responder à crise actual? A promessa de Sócrates em 2005 de criar 150 mil novos empregos, foi vista com aceitação, porque estávamos a sair da dupla crise que se abateu sobre nós e da qual nunca saímos. Tinha-se esgotado o nosso modelo de desenvolvimento, miseravelmente baseado no preço da mão-de-obra, em Portugal. A taxa de desemprego rondava na altura das eleições os 7%. Este facto explica a aceitação pelos portugueses de uma proposta de criação de 150 mil novos postos de trabalho. Vimos depois que a turva proposta não era mais que demagogia. Como se um Governo pudesse, por decreto, criar emprego. Poder até pode mas será sustentável? Já a aposta nas Novas Oportunidades, na qualificação dos portugueses, no investimento em investigação e tecnologia aplicada às empresas, esse indicador mostra uma alteração no paradigma do desenvolvimento. Foi uma boa aposta, já deu frutos, é uma tarefa de todos e a meu ver a chave para termos um futuro mais risonho. O resto, os défices estruturais e conjunturais, isso é coisa de menor importância, quando é o futuro de um povo que está em causa.

Porque os atrasos foram reconhecidos, Portugal sempre fez parte do grupo dos países da coesão. Os fundos de coesão pretendiam responder a essa chaga, o nosso atraso estrutural. Qual foi a aposta? Destruição da Agricultura e Pescas, construção de auto-estradas para melhor ligar, não o país mas, os mercados e a aposta num único sector industrial, o cluster automóvel, como forma de baixar os custos de transporte e assim integrar os mercados numa perspectiva Regional, à escala europeia. Ainda a crise de 2001 e os anos que lhe seguiram fez com que as liberalizações a nível global aumentassem e as deslocalizações nesse nicho se expandissem primeiro a Oriente e mais tarde, em 2004, ao Leste europeu. Ficou a Autoeuropa e pouco mais. Vamos ver até quando. Os benefícios fiscais e a rede de infra-estruturas criada de propósito para a suportar ainda a vão aguentando como um activo do Grupo VW.

Desenvolveram-se grupos de investigação dedicados a esse sector. Conseguirão eles inovar e criar algo de raiz? Carros menos poluentes pelo recurso a energias de fontes renováveis? Haverá capacidade financeira para investir nesse sector? A cortiça e os Colombos são ainda a jóia, nas coroas que os nossos reis ostentam.

O país do Sol não consegue fazer uma aposta séria e democrática na energia solar? Através da instalação de painéis solares em todas as casas, tal como entendemos o saneamento básico, electricidade, telefone e demais infra-estruturas, como sendo uma obrigação do estado? A possibilidade de em cada casa haver uma fonte de energia com capacidade de alimentar a rede energética tem de ficar apenas nas mãos dos mais afortunados? Será isso sustentável ou justo? Alguém hoje aceitaria que lhe dissessem: água canalizada em casa não porque é caro e os senhores são pobres? E tornar-nos independentes do exterior em termos energéticos, para consumo doméstico, não é um bom desafio? E baixar a factura da electricidade ou até mesmo transformá-la numa fonte de receita para cada família, é assim tão utópico? A produção em massa faz baixar os preços de produção, isso é básico. Os custos ambientais, se confrontados com os proveitos, aposto que são, assim, reduzidos e por isso uma boa aposta. Para mais, o conhecimento actual já é suficiente para reciclar e reutilizar tudo o que existe já que tudo isso foi produzido pelo homem e sobre o mesmo objecto tem um pleno conhecimento. Mais uma vez, os custos baixam com a generalização das práticas.

O mundo não pode suportar que os pobres sejam excluídos da possibilidade de ter energia solar. O desafio é global. Podemos começar em nossa casa.

segunda-feira, agosto 22, 2011

Estudantes

João entra no café com um passo apressado. Pela forma demorada com que olha para os poucos clientes presentes, parece procurar alguém. Afinal chegara antes da hora marcada. Tem assim tempo para procurar a mesa que mais lhe parece apropriada para o encontro.

Numa mesa junto à parede, está um homem com para lá de meia-idade. Sozinho com o seu copo de três e o maço em cima da mesa, fuma outro cigarro para não dar pelo tempo que não passa. O jornal, dobrado, já foi lido. Não encontrou nada que lhe dissesse respeito. Eram sempre as notícias do costume. Mais uma visita de sua eminência o Cardeal à Província, mais uma vitória do Benfica. Não tem pois, João, nada com que se preocupar. Dali não vem perigo. E porque haveria de vir?

Senta-se na mesa junto à janela. Aquela que lhe parece mais resguardada dos restantes clientes. Levanta a cabeça na direcção do empregado e aguarda que este lhe dirija o olhar. Debaixo do braço, João trazia um embrulho que colocou sobre o colo assim que se sentou.
– O que vai tomar? – Diz o empregado entretanto chegado à sua beira.
– Espero por companhia. Se não se importa peço depois. – Passando a mão pela garganta diz apressadamente – Mas olhe, traga-me então um de três que mato já, esta secura.
O empregado volta para detrás do balcão e sacode os ombros como que a dizer – Esta juventude nunca sabe o que quer!

Joana chega ao café, no seu plácido passo olha pela vitrina e localiza logo o João. Olha por cima do ombro para certificar-se de que ainda vem sozinha e dirige-se à mesa. Suavemente coloca a mão no ombro direito do João e senta-se à sua frente.
– Que susto! – Diz o rapaz de olhos arregalados. Suspira e sorri-lhe.
– Desculpa o atraso, fiquei a estudar e perdi as horas.
– Chegaste bem a tempo. O que tomas?
Nisto, chega o empregado com o copo de três na bandeja, apoiada no antebraço e com o tradicional pano dobrado suspenso no pulso.
– Aqui tem. Vão desejar mais alguma coisa? A menina? – Olhando para o empregado, responde apenas – O mesmo.
– Então e a aula? Valeu a pena?
– Sabes como são as coisas, uma chatice. Mas no intervalo falei com uma colega que nos pode ser muito útil. – E de que forma – responde o João pondo a cabeça meio de lado e a franzir o sobrolho. – Ela é filha de papás ricaços e a família tem uma casa ali para os lados de Paço d’Arcos. Convidou-me para ir passar o fim-de-semana e disse para levar quem quisesse. Podíamos ir com o Fonseca e com o Zé Pires e tratávamos de tudo. Que achas?
– Não sei, e o resto da família? Não vai ser fácil esconder…
– Não tens com que te preocupar, tirando os caseiros não vai lá estar mais ninguém, para além de nós e de dois outros amigos da Filomena.
– Sendo assim até pode ser bom mesmo. Temos que acabar depressa com isto. Já estou farto de “Democracia” até aos olhos.
O empregado chega mais uma vez junto dos jovens com outro copo de três e com o mesmo ar folgado de antes e coloca o copo em frente de Joana.
Então, a que brindamos? – Diz Joana
– Olha, brindemos à Liberdade!
Erguem os copos olhando-se mutuamente. Levam os copos à boca.
Não passaram do primeiro gole. Enquanto o empregado trazia o pedido, dois homens tinham entrado. Sentaram-se na mesa entre o fumador despreocupado e o empregado. Ao ouvirem o brinde dos jovens, saltaram de uma só vez e, abrindo o casaco com uma mão e retirando as pistolas com a outra, gritaram – Quietos! Somos da Polícia e os jovens vão connosco. Vão-nos acompanhar à “António Maria Cardoso”. Nada de gritaria e ninguém se vai magoar.
João ainda esboçou o movimento para se levantar mas a mão pesada de um dos agentes, no seu ombro direito, convenceu-o. Aquele impulso de resistência, fê-lo esquecer-se do embrulho que com estrondo caiu no chão. Do embrulho apareceram algumas folhas dactilografadas. Numa delas lia-se “Programa Para a Democratização da República”. Trabalho final de curso.

Anónimo

segunda-feira, agosto 15, 2011

Stop Coddling the Super-Rich By WARREN E. BUFFETT


Para memoria futura.


Stop Coddling the Super-Rich

Omaha

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OUR leaders have asked for “shared sacrifice.” But when they did the asking, they spared me. I checked with my mega-rich friends to learn what pain they were expecting. They, too, were left untouched.
While the poor and middle class fight for us in Afghanistan, and while most Americans struggle to make ends meet, we mega-rich continue to get our extraordinary tax breaks. Some of us are investment managers who earn billions from our daily labors but are allowed to classify our income as “carried interest,” thereby getting a bargain 15 percent tax rate. Others own stock index futures for 10 minutes and have 60 percent of their gain taxed at 15 percent, as if they’d been long-term investors.
These and other blessings are showered upon us by legislators in Washington who feel compelled to protect us, much as if we were spotted owls or some other endangered species. It’s nice to have friends in high places.
Last year my federal tax bill — the income tax I paid, as well as payroll taxes paid by me and on my behalf — was $6,938,744. That sounds like a lot of money. But what I paid was only 17.4 percent of my taxable income — and that’s actually a lower percentage than was paid by any of the other 20 people in our office. Their tax burdens ranged from 33 percent to 41 percent and averaged 36 percent.
If you make money with money, as some of my super-rich friends do, your percentage may be a bit lower than mine. But if you earn money from a job, your percentage will surely exceed mine — most likely by a lot.
To understand why, you need to examine the sources of government revenue. Last year about 80 percent of these revenues came from personal income taxes and payroll taxes. The mega-rich pay income taxes at a rate of 15 percent on most of their earnings but pay practically nothing in payroll taxes. It’s a different story for the middle class: typically, they fall into the 15 percent and 25 percent income tax brackets, and then are hit with heavy payroll taxes to boot.
Back in the 1980s and 1990s, tax rates for the rich were far higher, and my percentage rate was in the middle of the pack. According to a theory I sometimes hear, I should have thrown a fit and refused to invest because of the elevated tax rates on capital gains and dividends.
I didn’t refuse, nor did others. I have worked with investors for 60 years and I have yet to see anyone — not even when capital gains rates were 39.9 percent in 1976-77 — shy away from a sensible investment because of the tax rate on the potential gain. People invest to make money, and potential taxes have never scared them off. And to those who argue that higher rates hurt job creation, I would note that a net of nearly 40 million jobs were added between 1980 and 2000. You know what’s happened since then: lower tax rates and far lower job creation.
Since 1992, the I.R.S. has compiled data from the returns of the 400 Americans reporting the largest income. In 1992, the top 400 had aggregate taxable income of $16.9 billion and paid federal taxes of 29.2 percent on that sum. In 2008, the aggregate income of the highest 400 had soared to $90.9 billion — a staggering $227.4 million on average — but the rate paid had fallen to 21.5 percent.
The taxes I refer to here include only federal income tax, but you can be sure that any payroll tax for the 400 was inconsequential compared to income. In fact, 88 of the 400 in 2008 reported no wages at all, though every one of them reported capital gains. Some of my brethren may shun work but they all like to invest. (I can relate to that.)
I know well many of the mega-rich and, by and large, they are very decent people. They love America and appreciate the opportunity this country has given them. Many have joined the Giving Pledge, promising to give most of their wealth to philanthropy. Most wouldn’t mind being told to pay more in taxes as well, particularly when so many of their fellow citizens are truly suffering.
Twelve members of Congress will soon take on the crucial job of rearranging our country’s finances. They’ve been instructed to devise a plan that reduces the 10-year deficit by at least $1.5 trillion. It’s vital, however, that they achieve far more than that. Americans are rapidly losing faith in the ability of Congress to deal with our country’s fiscal problems. Only action that is immediate, real and very substantial will prevent that doubt from morphing into hopelessness. That feeling can create its own reality.
Job one for the 12 is to pare down some future promises that even a rich America can’t fulfill. Big money must be saved here. The 12 should then turn to the issue of revenues. I would leave rates for 99.7 percent of taxpayers unchanged and continue the current 2-percentage-point reduction in the employee contribution to the payroll tax. This cut helps the poor and the middle class, who need every break they can get.
But for those making more than $1 million — there were 236,883 such households in 2009 — I would raise rates immediately on taxable income in excess of $1 million, including, of course, dividends and capital gains. And for those who make $10 million or more — there were 8,274 in 2009 — I would suggest an additional increase in rate.
My friends and I have been coddled long enough by a billionaire-friendly Congress. It’s time for our government to get serious about shared sacrifice.
Warren E. Buffett is the chairman and chief executive of Berkshire Hathaway.

segunda-feira, junho 06, 2011

A terceira metamorfose alemã: recusar a grandeza?

Neste artigo publicado no DN de 6 de Junho de 2011, o autor alerta-nos para alguns dos desafios que temos para superar. O maior deles é o de nos superarmos a nós próprios. A força do medo não nos pode paralisar, pelo contrário, só nos pode, através de muita inteligência, e toda a paciência, fazer encontrar as saídas do labirinto e libertar o amor próprio. Haverá maior ambição? A inteligência para vencer o mestre, a paciência para aprender quem somos. Nenhuma está fora do alcance individual.

A terceira metamorfose alemã: recusar a grandeza?

por VIRIATO SOROMENHO-MARQUES
Em 1951, num contexto bem diferente - o do rearmamento alemão no quadro da guerra da Coreia e do conflito Leste-Oeste -, Eduard Spranger escreveu que a Alemanha se tornara, outra vez, no povo que transportava consigo o destino da Europa (Schicksalsvolk). Sessenta anos depois, Spranger volta a ter razão. Só Berlim está em condições de impedir que a crise das dívidas soberanas provoque a implosão da Europa. Só a força da Alemanha poderá promover a refundação da Europa com novas vestes, aprofundando os processos de legitimação e fazendo a União Europeia caminhar numa lógica de solidariedade e destino comum que está hoje em perigo. Se a moeda única cair (e os efeitos de contágio de uma reestruturação da dívida grega ou mesmo do regresso ao dracma não podem ser menosprezados), a União Europeia fragmentar-se-á, e com isso todos os cavaleiros do Apocalipse europeu regressarão da sua longa letargia.
Nos últimos cento e quarenta anos, a Alemanha passou por três metamorfoses fundamentais na afirmação da sua identidade. Em duas delas, uma Alemanha desmesurada conduziu o mundo a duas guerras mundiais. Hoje, a destruição da Europa pode ter origem no contrário. Numa Alemanha, sem memória, que pensa pequenino, e que recusa ser aquilo que é: um país excepcional com responsabilidades maiores do que qualquer outro país do Velho Continente.
Primeira metamorfose: o império apressado
Em 1871, depois de vencer a França, Bismarck conseguia um duplo sucesso: criar um Estado alemão e restaurar o império germânico. O êxito do II Reich era ameaçador não só para os seus vizinhos, mas também para os representantes mais lúcidos da inteligência alemã. Nietzsche foi um dos pensadores que retomou a velha pergunta, que já era possível descortinar em Fichte e Heine, bem como nas meditações de Saint-Simon e Goethe: será adequada a relação existente entre o Estado alemão e a alma alemã? Será que a nova vocação imperial se coadunaria com a vocação e o potencial expressivo e produtivo da cultura germânica? A resposta de Nietzsche, dada em 1888, era negativa e perturbante. O nacionalismo e a vocação imperial condenavam a cultura alemã à menoridade. Perante o fracasso de uma ideia cosmopolita de Europa, vencida pela barragem poderosa dos nacionalismos, a Alemanha teria de escolher entre ser uma potência militar e económica, ou uma potência cultural. Não haveria meio-termo.
Em 1871, a Alemanha iniciou um processo em que iria, progressivamente, tornar-se cada vez menor, quando medida pela bitola exigentemente crítica e universalista dos seus maiores pensadores "clássicos", e cada vez maior, quando avaliada pelas expectativas e receios dos seus vizinhos e parceiros do condomínio europeu. Em 1914, na eclosão da tragédia, coube a um filósofo judeu, Hermann Cohen, fazer o mais impressionante requiem sobre esse ideal de Alemanha espiritual e cosmopolita, que Nietzsche advertira estar em risco de morte iminente.
Segunda metamorfose: Derrota, desmesura e catástrofe
Em 1918, a Alemanha saiu exangue dos quatro terríveis anos de guerra total, mas apesar de esgotada na sua juventude dizimada e no seu orgulho nacional ferido pelo injusto Tratado de Versalhes, a nação alemã ainda manifestou um enorme potencial de recomeço. A intensidade cultural, a fertilização cosmopolita, a coragem de experimentar e de provocar fazem dos escassos anos da República de Weimar uma luz intensa e trágica que faz a diferença, por contraste com o cinzento panorama do espírito na Alemanha e na Europa do século XX.
Em 1945, na derrocada do III Reich, a Alemanha foi literalmente despedaçada. Às suas próprias mãos, e por sua própria responsabilidade, a senda imperial hitleriana esteve prestes a conduzir os alemães a um destino idêntico ao dos polacos em 1772, quando o seu país se viu espartilhado pela Rússia, Áustria e Prússia. Mas foi pior ainda. Em 1945, a Alemanha não se limitou a ser derrotada numa guerra apocalíptica, a que só faltou o iminente bombardeamento nuclear de cidades germânicas para que o cataclismo fosse irreversível. A Alemanha foi despedaçada, amputada, ferida no corpo, mas também na alma. O nome do país tornou-se sinónimo de opróbrio e holocausto. Sessenta e seis anos passados, as ondas de choque de 1933 e 1945 ainda se fazem sentir. Já não são sombras simplesmente europeias, ou mesmo exclusivas do Velho Continente. São anátemas mundiais, perigos globais. Incontornáveis.
Um dos maiores de todos os danos globais herdados da II Guerra Mundial é, sem dúvida, a destruição e/ou exílio das comunidades judaicas que durante séculos foram um fermento vigoroso para o desenvolvimento da economia e da cultura europeias. Hitler conseguiu, pelo menos no Velho Continente, "resolver" a "questão judaica" (Judenfrage) à sua maneira. O que sobreviveu do enorme potencial criativo das comunidades judaicas europeias brilha hoje nos EUA, ou transferiu-se para a zona mais fracturante do planeta, a estreita faixa de terra, na margem oriental do Mediterrâneo, onde se construiu o Estado de Israel. Neste domínio, a II Guerra Mundial não foi uma derrota só alemã, mas de toda a Europa. Estamos hoje mais pobres e somos nós, os europeus, os primeiros responsáveis pelo impasse trágico a que as relações de Israel com o mundo árabe conduziram.
Terceira metamorfose: Liderar ou destruir a União Europeia
De Konrad Adenauer a Helmut Kohl, passando por Willy Brandt e Helmut Schmidt, a Alemanha foi sempre o motor e o banco da construção europeia. Uma liderança discreta, fundada numa combinação feliz entre o reconquistado poderio do milagre económico e a expiação da "culpa alemã" (die deutsche Schuld) pela guerra e pelo holocausto. A pressão da ameaça soviética ajudava à coesão da Europa Ocidental. Pelo contrário, o colapso da URSS, a reunificação alemã, o alargamento acelerado da União e a usura do esquecimento (é de notar que na RDA, onde nasceu e foi educada Angela Merkel, a questão da culpa alemã sempre foi tratada como um problema do regime nazi e não do povo alemão...) foram reduzindo a ideia que a Alemanha tinha da sua centralidade para a viabilidade da União Europeia. Um sinal disso: no início de 2004, o governo alemão (da coligação de sociais-democratas e verdes) juntou-se aos outros cinco países que mais contribuem para o orçamento da União Europeia, numa carta exigindo ao presidente da Comissão Europeia (então o italiano Romano Prodi) que o orçamento da União não ultrapassasse a pobre fasquia de 1% do produto interno total da UE, apesar dessa redução ocorrer precisamente numa altura em que a União passava de 15 para 25 Estados-membros!
A condução alemã do combate à crise das dívidas soberanas, em que países inteiros são tratados como criminosos, ou vencidos de uma guerra económica não declarada, tem sido desastrosa. Atenas, Dublim, ou Lisboa têm responsabilidades. Mas não é verdade que a Alemanha também violou o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC)? E não é verdade que foi precisamente nessa sequência que o PEC foi flexibilizado (2005), legitimando políticas orçamentais mais aventureiras? E não é verdade que entre Maio de 2001 e Dezembro de 2005 a taxa principal das operações de refinanciamento do BCE passou de 4,75% para 2% mantendo--se nesse nível entre Junho de 2003 e Dezembro de 2005? E não é verdade que as autoridades nacionais estiveram aquém das suas responsabilidades em matéria de controlo prudencial e comportamental? E, sobretudo, não é verdade que toda a arquitectura da UEM carecia de um cimento político para não vacilar sob o ímpeto das primeiras tempestades?
Sendo tudo isto verdade, importa recolocar a questão crucial: será que a Alemanha tem hoje uma clara imagem de si própria? A Alemanha é, hoje, mais ainda do que no passado, o país-chave da União. Da capacidade germânica de actuar no longo prazo, para além da agenda dos seus problemas domésticos imediatos, dependerá uma parte substancial do futuro, cheio de incertezas e esperanças, de mais de 493 milhões de europeus. Sem a liderança da Alemanha, a União Europeia perderá a energia que garante a possibilidade de manter um rumo e uma finalidade estratégicas, garantindo a procura da sustentabilidade numa atmosfera de paz e cooperação mútua.
Não é grande quem quer, mas sim quem pode. Mas só permanece na grandeza quem faz por merecê-lo em cada gesto quotidiano. Este é um princípio de orientação válido para os indivíduos e para povos. Continuar a persistir na viabilidade de uma estratégia de "isolamento" dos países em crise financeira, em vez de avançar para a governação económica europeia e para o federalismo político, é um erro, que vai contra o próprio interesse nacional da Alemanha.
Será preciso que a Espanha, a Bélgica e a Itália sigam as pisadas da Grécia, da Irlanda e de Portugal, para que a Alemanha perceba que o seu interesse nacional, afinal, coincide com o interesse europeu?
Nessa altura poderá ser demasiado tarde. Mesmo para o poder da Alemanha. Teremos uma resposta, para o bem ou para o mal, nos próximos um a dois anos. Esperemos que a Europa lhe sobreviva. Caso contrário, seremos apenas aquilo a que a geografia nos destinou: uma península da Ásia onde durante milénios habitou, como disse um grande alemão, o filósofo Hegel, o "espírito do mundo" (Weltgeist).