sábado, dezembro 25, 2010

Presenças inesperadas.

No caminho para chegar a casa,

percebi que depressa tinha aprendido a percorre-lo.

Há dois dias que o era, e apenas uma outra vez o tinha percorrido.

Em Berlin faço um caminho para casa diferente pela quarta vez.

Tantas quantos os sítios aos quais já chamei ou ainda chamo casa.

Em comum têm o serem não mais do que um caminho dentro de casa.

É neste momento, assim, a minha casa, toda a cidade.

A vista sobre esta imensa planície,

desde o vigésimo terceiro andar,

é uma parte dos meus dias.

Por sê-lo, faz parte, quando a casa chego,

abeirar-me da janela e espreitar através dela.

É um encanto e consola a alma,

o perfil da cidade, com as suas luzes e formas.


Já tinha visto algumas estrelas no céu desta noite,

outro ponto de interesse que se tinha acrescentado

ao perfil de Berlin.


Muito verdadeiramente mesmo,

eu não estava era à espera disto.


Acima do horizonte,

lutando com as nuvens o seu lugar no meu dia,

levantava-se a Lua, bem tarde, já de madrugada.

Redonda, gorda e tão fraca.


De ambos os lados

entrecortada por um rasgo de nuvem.

Nem mesmo a intensidade do seu reflexo

conseguia negar aos rasgos de nuvem o seu lugar.


Cor de rosa, cor curiosa,

mostrou-me que a meu lado,

capaz de perceber de forma semelhante

um toque de humanidade na imagem daquela Lua,

faltava mesmo a minha cara e enorme amiga Alberta.


A Betinha sabe bem apreciar a natureza

e dela extrair o mais belo.


Sabes Betinha,

dei por mim a responder à pergunta,

vais passar o natal a casa,

com: eu estou em casa.

Por agora, Berlin é a minha casa,

e nela, haverá sempre lugar

para todos os meus amigos.

quarta-feira, novembro 24, 2010

MOFO

…A janela aberta trazia arrastado pela brisa o cheiro a mofo. De tempos a tempos ao ritmo da brisa da madrugada. Eram já as madrugadas quentes do início do verão. As limpezas no chão do quarto tinham-no deixado satisfeito e no entanto, a brisa trazia-lhe o cheiro fétido da água suja entranhada no soalho. Afinal a limpeza não tinha sido suficientemente perfeita…

sexta-feira, junho 04, 2010

50 ANOS DE DÚVIDAS

Uma mensagem de esperança.

Que a civilização europeia duvida profundamente de si mesma está bem patente nas incertezas quanto ao futuro comum da União Europeia. E, tal como responde Ortega e Gasset, apesar disso, nunca uma civilização morreu de um ataque de dúvida. Os sucessivos impasses no processo da construção europeia não impediram, no entanto, desde os tratados fundadores de Roma até ao mais recente documento produzido pelas instituições comuns, que o caminho da Europa se fosse fazendo. “Toda civilización ha nacido o ha renacido como un movimiento natatorio de salvación”.[1] A frase anterior foi proferida por Ortega e Gasset no decorrer de uma conferência proferida a 7 de Setembro de 1949, na Universidade Livre de Berlin. O contexto é o do combate íntimo do homem, face às suas dúvidas. O produto desta reacção é um precipitado. Uma nova fé, de que se veste e com a qual vai viver a nova era. Numa analogia, entendida por mim, com o trabalho do Químico que sintetiza um novo composto é perfeita. Perante um novo composto, sintetizado, purificado, analisado e no fim comunicado, alguns investigadores adoptam aquela postura característica das mães babadas, comportam-se como se de um filho se tratasse e a ele dedicam muito do seu pensamento.

Gasset foi autor de várias conferências nas Universidades alemãs; em Berlin (1949), em Munique (1953) e vinte cinco anos passados da publicação A Rebelião Das Massas, em 1955. A continuada dedicação de Gasset ao povo alemão impressiona, embora não mais que o conteúdo das reflexões proferidas e publicadas. Numa nota de rodapé, na obra citada (p.247-8), são relatados os ecos da passagem, em 1949, por Berlin, mostrando a avidez dos estudantes alemães, imagino que não só estudantes, em ouvi-lo. A desordem instalou-se, com necessidade de intervenção policial, dada a falta de lugares, nas preenchidas salas de aula onde foi possível instalar altifalantes. Em 1955, Gasset dirá que a sua obra, A Rebelião Das Massas, foi ali mais lida do que compreendida mas a humorística analogia entre o nome do livro e o sucedido não tardou, a aparecer nos jornais. Para além destes factos, aquilo que mais me prende é a função que Gasset sabe estar a desempenhar naquela altura. Foi falar de Europa no sítio em que mais necessária, por ventura, seria uma lição de humildade e de saber. Talvez tenha funcionado como o tónico que o povo alemão, derrotado na maior das guerras até a data, precisava para encarar o futuro de cara levantada e com a consciência serenada. Quis recuperar o significado de conceitos que tinham perdido o sentido. Penso que foi um bom recuperador de ideias e formas de pensar, interrompidas ou deturpadas, entretanto. Na altura, era o decano da ideia de Europa.

Um ponto comum entre Nietzsche e Ortega e Gasset, entre muitos, será a reflexão que fazem da situação de crise. A crise instalada, depois de um período de guerra, foi política e cultural. Em Nietzsche temos um elevar político, a formação do estado, e um posterior decaimento cultural. Em Gasset verificamos um declínio completo em termos políticos, no fim da 2ª Guerra Mundial. Se se verificou o erguer em termos culturais após as Guerras conducentes ao nascimento da Alemanha, será possível que depois da crise mundial tenha renascido a Europa?

Será a crise política actual fruto de um erguer cultural europeu marcado pela sua unificação? A Europa política ainda não conseguiu incorporar, no espírito, a sua nova dimensão. Estamos, então, no tempo do desenvolvimento da vertente cultural da nova Europa. É o tempo de compreender a forma viva, recriada. Explicá-la, será o próximo passo para um crescimento em termos políticos do projecto europeu de paz que, esperamos, viva e perpétua. Terá sido a compreensão de que a destruição seguinte poderia ser definitiva aquilo que nos tem impedido de uma nova catástrofe?

Gasset adverte: “…las catástrofes pertenecen a la normalidad de la historia, son una pieza necesaria en el funcionamiento del destino humano”[2], consciente, que está, do outro perigo, que é, o adormecimento criador. A superficialidade dos fenómenos de primeiro olhar - a penúria económica, a confusão política- actuais, será sinónimo de que tipo de crise-catástrofe? A que resulta da falta de vontade política ou da estranheza cultural vigente? Está pois, sugerido o caminho através do qual a Europa pode fazer-se.

A sociedade europeia.

Uma sociedade não se constitui por um acordo entre as vontades. Ao contrário, todo o acordo de vontades pressupõe a existência de uma sociedade. Ao pensar a sociedade europeia, Gasset desenvolve esta ideia, muito semelhante e indo na direcção daqueles que acusam, de tecnocrata, a construção do projecto Europeu. O direito não emana da sociedade, como um suspiro, naturalmente, mas é criado num ponto longínquo, tomando, por base, critérios que pretendem defender o bem comum mas que não são reconhecidos como naturais a ninguém. Os acordos que não favorecem nenhuma das partes, ou seja, que são igualmente maus, podem resultar num acordo positivo desde que o acordo seja suficientemente importante para o futuro imediato, pese embora poder ser uma fonte de futuros ressentimentos.

A sociedade europeia: tem costumes europeus, usos europeus, opinião pública europeia, direito europeu, poder político europeu. Estes elementos, caracterizadores sociais, desenvolvem-se naturalmente mas em diferentes estágios de evolução, conforme o avanço no caminho das idéias, efectuado pela sociedade em causa. O princípio da adopção das melhores práticas para os diversos ramos do saber, se forem só apresentadas como o melhor que se faz lá fora não terá melhor destino que toda a herança cultural europeia. Quer por simples resistência nuns casos ou por desajuste completo noutros, o ressentimento face à Europa é tanto português como de qualquer outra sociedade posta à margem ou que navegue noutra direcção.

Lisboa, Julho de 2008.




[1]Toda a civilização nasceu ou renasceu como um movimento nadatório de salvação”. Ortega Y Gasset, Obras completas, Tomo IX, Meditación de Europa, Madrid, Alianza Editorial, 1983, p. 252.

[2] “As catástrofes pertencem à normalidade da história, são uma peça necessária ao funcionamento do destino humano”. Ortega y Gasset, ob. cit., p. 252.

terça-feira, janeiro 26, 2010

NE CHANGE RIEN

Jeanne Balibar

Ne Change Rien
Os contrastes de Pedro Costa.
Uma silhueta traçada por um fio de luz toma posição no escuro, no palco. Acompanhada pelos reflexos dos instrumentos, por outras silhuetas, de gente, e pela música que timidamente produzem, Jeanne Balibar interpreta “Torture”. O contraste entre a imagem, tão finamente delineada, pontilhada por suaves focos, e a reacção do público convoca o primeiro arrepio.
“Ne Change Rien” dá-nos, a cada momento, a beleza do contraste entre: o claro e o escuro, a repetição até ao limite e a criação musical, a insegurança e a solidez.
É através do claro-escuro, magnificamente trabalhado, que Pedro Costa nos mostra traços de Jeanne Balibar, a desempenhar o papel de “Jeanne Balibar”. Vemos a cantora a lutar contra os tempos da canção, a interiorizar o ritmo certo para colocar as palavras, por entre fios de luz que saem dos corpos e que a pouco e pouco acabam por compor a sala. O mesmo acontecendo com a música saída da guitarra deRodolphe Burger, ao envolver o absoluto silêncio do estúdio. Desta combinação nascerá uma canção, nascerá “Cinema” por Jeanne Balibar.
“Ne Change Rien” documenta a aprendizagem dura e lenta, o voltar atrás constante, a repetição necessária, o caminho entre o satisfatório e o sublime. O plano, sempre fixo, discreto, é como o olhar de um convidado que assiste ao ensaio. É esse o nosso papel enquanto privilegiados espectadores. Será mesmo o único papel a ser desempenhado durante os 97 minutos do filme. O processo de criação da música está envolto numa tensão permanente que uma oportuna gargalhada ajuda a aliviar, e que, assim, nos permite libertar a respiração. Quem já teve a oportunidade de estar presente num momento de criação, com amigos, na garagem na sala de ensaios ou no estúdio, irá reconhecer essa tensão e o prazer que daí advém. O esforço dos longos ensaios e das sessões de gravação culminam nas performances ao vivo em que saltam à memória as dificuldades vencidas, elevando assim a nossa satisfação e reforçando a cumplicidade.
As músicas, compostas por Rodolphe Burger, com letras de Pierre Alféri, são apresentadas a Balibar para lhes dar voz, permitindo-lhe no entanto alguma margem na interpretação. Deste processo criativo surge o outro elemento de contraste que se dá entre a insegurança da intérprete e a solidez dos músicos, com Rodolphe à cabeça; assim como do contraste entre as vozes, a dela e a dele, a primeira cheia de leveza e a segunda mais grave. Contrasta ainda a voz límpida de Jeanne Balibar com a electrónica usada nalgumas músicas.
Pedro Costa filmou a actriz Jeanne Balibar, durante cinco anos, no papel de cantora que também é, registando assim o seu percurso por entre ensaios e gravações para os álbuns de Rock/Electro/New Wave, os ensaios para a ópera bufa de Jacques Offenbach, “La Périchole”, aulas de canto lírico, e concertos com a banda que perfaz o elenco do filme. A cantora afirma ser este um dos mais belos filmes que fez. Não representou um papel e acabou por se aproximar paradoxalmente do ideal profundo do que é isso de ser actriz. O filme não resulta de um projecto estruturado previamente, mas sim da sua permanente invenção ao longo dos anos decorridos.
“Ne Change Rien” segue os passos de Jeanne Balibar. As imagens, no estúdio de ensaios e de gravação, combinam instrumentos e demais aparelhagem, sempre revelados pelo subtil brilho de algum ponto de luz reflectido, deixando à imaginação a sua parte não iluminada. Mostra o mínimo, para deixar sonhar o máximo. É nesta atmosfera de meia-luz que se vão descobrindo alguns detalhes no espaço envolvente. Um gato, outro, uma lareira discretamente acesa, um pano com xadrez a cobrir peças de mobília, bancos. O exterior à casa entra por uma janela, já quase fora do plano em que a cantora está perante o microfone. Estamos na fase de gravações. “Papéis” estudados, trabalho de tecelagem, manobrado com botões e rato. Surgem agora as canções quase completas, a tensão aumenta e os planos tornam-se mais diversificados e curtos. “Cinema” está quase. A festa surge no entanto ao som de outra faixa do álbum “Slalom Dame”. “ Ton Diable” é o tema ao som do qual assistimos ao descomprimir em jeito de celebração, por parte da banda.
O slalom de Pedro Costa passa ainda pelo Teatro onde Jeanne Balibar ensaia “La Périchole”. Aqui, a câmara coloca-se numa posição mais lateral, vista da quarta parede, ainda como um privilegiado espectador de ensaios, virada para a saída de cena. São as cenas mais iluminadas.
O ensaio de canto lírico tem um plano fechado sobre a cara da cantora, revelando todos os pormenores do seu esforço e do seu sofrimento. Mais duas frases e acaba a lição. Respirar fundo outra vez.
Há outro lugar a destacar; Tóquio. Pedro Costa acompanha a banda. Filma cenas profundamente japonesas, pela contemplação do momento, com o som em fundo, de um ensaio, antecedendo um provável espectáculo. Aqui também, o exterior entra discretamente na cena, reflectido no vidro de um adereço na parede.
“Ne change Rien” termina com a banda a aquecer vozes e mãos, num improviso instrumental de “Rose”, penúltima faixa do primeiro álbum de Jeanne Balibar, no qual “Torture” é a última.
Inserido no género do documentário musical, de que “ONE PLUS ONE” (1968) de Godard será referência, passa para além do retrato da banda, e do registo do nascimento de uma canção; no caso dos Rolling Stones “nasceu” Sympathy For The Devil”, tendo pelo meio um exercício artístico com mensagem política.
Em “Ne Change Rien”, seguimos exclusivamente os passos da actriz Jeanne Balibar na sua pele de cantora, com uma narrativa cheia de tensão, alimentada pela repetição obsessiva, e que culmina no luminoso contraste de sombras da cena inicial.