texto: Sandro Cândido Marques, fotografias: Lea Julie Mugnain 

Decorreu entre os dias 15 e 17 de Junho, em Neukölln, Berlim, a última edição do Festival de Artes e Culturas, 48 Stunden Neukölln. Sob o tema, Ultima Paragem: Neukölln, o Festival procurava levantar a questão de qual o impacto da imigração no bairro Berlinense de Rixdorf (Neukölln), ocorrida no longínquo ano de 1737. Terão as várias gerações de imigrantes, encontrado aí o seu paraíso?
As perceções são muito variadas e conducentes a diversas interpretações. Os fotógrafos Hugo Estrela e Lea Julie Mugnain realizaram uma exposição fotográfica com o nome Holy Späti, no Späti International, documentando como, para o proprietário de uma loja de conveniência, Dogan, Neukölln representa a sua Última Estação.

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Späti International

O lugar escolhido tinha sido a sala que serve a Dogan como arrecadação para as caixas de bebidas a vender. Mal dava para ver as paredes da sala, assim como andar por entre as caixas era difícil. Dois dias antes do início do evento, reuniram-se esforços e o espaço foi preparado, exigindo no entanto um trabalho de equipa e verdadeira solidariedade.
Tarefa cumprida e era então tempo para refrescar com uma cerveja. Ainda não tinham recuperado o fôlego e eis que chega ao Späti, “a casa”, um dos filhos de Dogan. Vinha de fato e gravata. Estava supercontente devido ao exame que tinha acabado de realizar, um exame de informática. Era pois motivo para festejar com Sekt. Abriu-se uma garrafa e um brinde ao seu sucesso foi feito. O dia-a-dia do Späti International é assim. Uma mistura entre a vida familiar, a vida do bairro e a dos clientes ocasionais, que entram e saem, em busca de uma bebida, um gelado, tabaco, etc..

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Inauguração

Um monte de gente na rua, à porta do Späti. Só isto era já muito diferente do Späti que tivera oportunidade de visitar durante o processo de montagem da exposição. De volta ao Späti, era já mais de meia-noite e a exposição tinha começado há cinco horas. Weserstrasse estava a fumegar com gente por tudo o que é Bar, Galeria, Café e quase todos esses sítios faziam parte da iniciativa 48 Horas de Neukölln. À porta do Späti estavam Hugo e Lea, entre visitantes, amigos e colegas, num ambiente de grande cumplicidade. Lá dentro as pessoas acotovelavam-se entre os frigoríficos e o balcão, à espera para pagar.

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Numa segunda divisão composta com mesas e cadeiras, a convidar para um momento mais relaxado, quatro ou cinco pessoas à conversa. À direita, a entrada para a sala onde 67 retratos de 40 por 50 centímetros, expostos nas três paredes, à esquerda, ao fundo e à direita, retratavam aqueles que se dispuseram a ser fotografados dentro de um Spätkauf. Novos e velhos, notívagos em busca de cerveja ou cigarros, clientes usuais em busca daquela compra urgente que salva o dia, detergente para a roupa, cola e snacks, mortalhas…
Dias após dia, nas semanas prévias ao fim de semana do evento, os dois fotógrafos passaram várias horas à espera do próximo cliente que se dispusesse a ser fotografado e a fazer parte de uma exposição. Na cabeça dos autores, a ideia era documentar as rotinas, as pessoas, o bairro em redor do Späti.

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Ultima Estação: Weserstrasse.

Durante a tarde, o lado Este da Weserstrasse é uma rua tranquila, com uma escola por perto, duas lojas e alguns bares que só acordam já ao fim do dia. É ainda o tempo para a vizinhança calmamente tomar uma bebida, calmamente disfrutar do silêncio, nas cadeiras e bancos oferecidos à rua pelo Späti de Dogan. A conveniência de uma loja onde um pouco de tudo se pode encontrar, ligada ao decorrer da vida familiar de Dogan, intimamente entrecortada pela permanente disponibilidade para atender quem entra ou quem permanece, é um contraste com o conceito de Späti. A pressa do consumo imediato por um lado e a lentidão das 24 horas de um Späti por outro.
“Dogan é muito popular. Tem um carácter muito forte. É uma pessoa especial, única.” Esta é a forma de Hugo descrever Dogan. Alguns minutos sentado à porta foram o bastante para verificar uma relação próxima da comunidade. O comentário acerca da nova bicicleta, dirigido a um cliente, o à-vontade com que mantém a espera para pagar, com mais uma brincadeira dirigida a outro cliente sentado à porta, na rua. O fim de estação nos dias de cada um pode bem ser o Späti da rua onde vivemos. A certeza de poder encontrar a última cerveja do dia, o tabaco para o resto da noite, a sobremesa, algo que ajude a acalmar os miúdos. Para todos, Dogan é uma fiável Endstation.
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Endstation?

O trabalho de Hugo e Lea foi muito bem recebido. Em conversa com os autores, nos últimos instantes da iniciativa que mexeu com Neuköln durante 48 horas, fico a saber que o trabalho foi convidado para ser mostrado num museu. A ideia parece ter interesse relevante para a comunidade. Assim sendo, o späti, pode afinal não ser a Endstation para este trabalho artístico, para esta ideia.
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Nas fotografias podemos ver as mais variadas reações ao fato de estarem a ser fotografados. Os muitos recetivos em pose pouco natural, os muito descontraídos e alegres com a vida, os reticentes. Os que aceitaram posar num canto forrado a azulejos brancos, ideal para as cores e luz. A disposição das fotografias na sala não obedece a critérios muito rígidos, apenas para alguns retratos, um equilíbrio face aos retratos ao lado de forma a conjugar cores, as das roupas e as das expressões. Entre elas, numa posição não destacada mas simplesmente entre elas, estava o retrato de Dogan, como todos os dias.