Neste artigo publicado no DN de 6 de Junho de 2011, o autor alerta-nos para alguns dos desafios que temos para superar. O maior deles é o de nos superarmos a nós próprios. A força do medo não nos pode paralisar, pelo contrário, só nos pode, através de muita inteligência, e toda a paciência, fazer encontrar as saídas do labirinto e libertar o amor próprio. Haverá maior ambição? A inteligência para vencer o mestre, a paciência para aprender quem somos. Nenhuma está fora do alcance individual.
A terceira metamorfose alemã: recusar a grandeza?
por VIRIATO SOROMENHO-MARQUES
Em 1951, num contexto bem diferente - o do rearmamento alemão no quadro da guerra da Coreia e do conflito Leste-Oeste -, Eduard Spranger escreveu que a Alemanha se tornara, outra vez, no povo que transportava consigo o destino da Europa (Schicksalsvolk). Sessenta anos depois, Spranger volta a ter razão. Só Berlim está em condições de impedir que a crise das dívidas soberanas provoque a implosão da Europa. Só a força da Alemanha poderá promover a refundação da Europa com novas vestes, aprofundando os processos de legitimação e fazendo a União Europeia caminhar numa lógica de solidariedade e destino comum que está hoje em perigo. Se a moeda única cair (e os efeitos de contágio de uma reestruturação da dívida grega ou mesmo do regresso ao dracma não podem ser menosprezados), a União Europeia fragmentar-se-á, e com isso todos os cavaleiros do Apocalipse europeu regressarão da sua longa letargia.
Nos últimos cento e quarenta anos, a Alemanha passou por três metamorfoses fundamentais na afirmação da sua identidade. Em duas delas, uma Alemanha desmesurada conduziu o mundo a duas guerras mundiais. Hoje, a destruição da Europa pode ter origem no contrário. Numa Alemanha, sem memória, que pensa pequenino, e que recusa ser aquilo que é: um país excepcional com responsabilidades maiores do que qualquer outro país do Velho Continente.
Primeira metamorfose: o império apressado
Em 1871, depois de vencer a França, Bismarck conseguia um duplo sucesso: criar um Estado alemão e restaurar o império germânico. O êxito do II Reich era ameaçador não só para os seus vizinhos, mas também para os representantes mais lúcidos da inteligência alemã. Nietzsche foi um dos pensadores que retomou a velha pergunta, que já era possível descortinar em Fichte e Heine, bem como nas meditações de Saint-Simon e Goethe: será adequada a relação existente entre o Estado alemão e a alma alemã? Será que a nova vocação imperial se coadunaria com a vocação e o potencial expressivo e produtivo da cultura germânica? A resposta de Nietzsche, dada em 1888, era negativa e perturbante. O nacionalismo e a vocação imperial condenavam a cultura alemã à menoridade. Perante o fracasso de uma ideia cosmopolita de Europa, vencida pela barragem poderosa dos nacionalismos, a Alemanha teria de escolher entre ser uma potência militar e económica, ou uma potência cultural. Não haveria meio-termo.
Em 1871, a Alemanha iniciou um processo em que iria, progressivamente, tornar-se cada vez menor, quando medida pela bitola exigentemente crítica e universalista dos seus maiores pensadores "clássicos", e cada vez maior, quando avaliada pelas expectativas e receios dos seus vizinhos e parceiros do condomínio europeu. Em 1914, na eclosão da tragédia, coube a um filósofo judeu, Hermann Cohen, fazer o mais impressionante requiem sobre esse ideal de Alemanha espiritual e cosmopolita, que Nietzsche advertira estar em risco de morte iminente.
Segunda metamorfose: Derrota, desmesura e catástrofe
Em 1918, a Alemanha saiu exangue dos quatro terríveis anos de guerra total, mas apesar de esgotada na sua juventude dizimada e no seu orgulho nacional ferido pelo injusto Tratado de Versalhes, a nação alemã ainda manifestou um enorme potencial de recomeço. A intensidade cultural, a fertilização cosmopolita, a coragem de experimentar e de provocar fazem dos escassos anos da República de Weimar uma luz intensa e trágica que faz a diferença, por contraste com o cinzento panorama do espírito na Alemanha e na Europa do século XX.
Em 1945, na derrocada do III Reich, a Alemanha foi literalmente despedaçada. Às suas próprias mãos, e por sua própria responsabilidade, a senda imperial hitleriana esteve prestes a conduzir os alemães a um destino idêntico ao dos polacos em 1772, quando o seu país se viu espartilhado pela Rússia, Áustria e Prússia. Mas foi pior ainda. Em 1945, a Alemanha não se limitou a ser derrotada numa guerra apocalíptica, a que só faltou o iminente bombardeamento nuclear de cidades germânicas para que o cataclismo fosse irreversível. A Alemanha foi despedaçada, amputada, ferida no corpo, mas também na alma. O nome do país tornou-se sinónimo de opróbrio e holocausto. Sessenta e seis anos passados, as ondas de choque de 1933 e 1945 ainda se fazem sentir. Já não são sombras simplesmente europeias, ou mesmo exclusivas do Velho Continente. São anátemas mundiais, perigos globais. Incontornáveis.
Um dos maiores de todos os danos globais herdados da II Guerra Mundial é, sem dúvida, a destruição e/ou exílio das comunidades judaicas que durante séculos foram um fermento vigoroso para o desenvolvimento da economia e da cultura europeias. Hitler conseguiu, pelo menos no Velho Continente, "resolver" a "questão judaica" (Judenfrage) à sua maneira. O que sobreviveu do enorme potencial criativo das comunidades judaicas europeias brilha hoje nos EUA, ou transferiu-se para a zona mais fracturante do planeta, a estreita faixa de terra, na margem oriental do Mediterrâneo, onde se construiu o Estado de Israel. Neste domínio, a II Guerra Mundial não foi uma derrota só alemã, mas de toda a Europa. Estamos hoje mais pobres e somos nós, os europeus, os primeiros responsáveis pelo impasse trágico a que as relações de Israel com o mundo árabe conduziram.
Terceira metamorfose: Liderar ou destruir a União Europeia
De Konrad Adenauer a Helmut Kohl, passando por Willy Brandt e Helmut Schmidt, a Alemanha foi sempre o motor e o banco da construção europeia. Uma liderança discreta, fundada numa combinação feliz entre o reconquistado poderio do milagre económico e a expiação da "culpa alemã" (die deutsche Schuld) pela guerra e pelo holocausto. A pressão da ameaça soviética ajudava à coesão da Europa Ocidental. Pelo contrário, o colapso da URSS, a reunificação alemã, o alargamento acelerado da União e a usura do esquecimento (é de notar que na RDA, onde nasceu e foi educada Angela Merkel, a questão da culpa alemã sempre foi tratada como um problema do regime nazi e não do povo alemão...) foram reduzindo a ideia que a Alemanha tinha da sua centralidade para a viabilidade da União Europeia. Um sinal disso: no início de 2004, o governo alemão (da coligação de sociais-democratas e verdes) juntou-se aos outros cinco países que mais contribuem para o orçamento da União Europeia, numa carta exigindo ao presidente da Comissão Europeia (então o italiano Romano Prodi) que o orçamento da União não ultrapassasse a pobre fasquia de 1% do produto interno total da UE, apesar dessa redução ocorrer precisamente numa altura em que a União passava de 15 para 25 Estados-membros!
A condução alemã do combate à crise das dívidas soberanas, em que países inteiros são tratados como criminosos, ou vencidos de uma guerra económica não declarada, tem sido desastrosa. Atenas, Dublim, ou Lisboa têm responsabilidades. Mas não é verdade que a Alemanha também violou o Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC)? E não é verdade que foi precisamente nessa sequência que o PEC foi flexibilizado (2005), legitimando políticas orçamentais mais aventureiras? E não é verdade que entre Maio de 2001 e Dezembro de 2005 a taxa principal das operações de refinanciamento do BCE passou de 4,75% para 2% mantendo--se nesse nível entre Junho de 2003 e Dezembro de 2005? E não é verdade que as autoridades nacionais estiveram aquém das suas responsabilidades em matéria de controlo prudencial e comportamental? E, sobretudo, não é verdade que toda a arquitectura da UEM carecia de um cimento político para não vacilar sob o ímpeto das primeiras tempestades?
Sendo tudo isto verdade, importa recolocar a questão crucial: será que a Alemanha tem hoje uma clara imagem de si própria? A Alemanha é, hoje, mais ainda do que no passado, o país-chave da União. Da capacidade germânica de actuar no longo prazo, para além da agenda dos seus problemas domésticos imediatos, dependerá uma parte substancial do futuro, cheio de incertezas e esperanças, de mais de 493 milhões de europeus. Sem a liderança da Alemanha, a União Europeia perderá a energia que garante a possibilidade de manter um rumo e uma finalidade estratégicas, garantindo a procura da sustentabilidade numa atmosfera de paz e cooperação mútua.
Não é grande quem quer, mas sim quem pode. Mas só permanece na grandeza quem faz por merecê-lo em cada gesto quotidiano. Este é um princípio de orientação válido para os indivíduos e para povos. Continuar a persistir na viabilidade de uma estratégia de "isolamento" dos países em crise financeira, em vez de avançar para a governação económica europeia e para o federalismo político, é um erro, que vai contra o próprio interesse nacional da Alemanha.
Será preciso que a Espanha, a Bélgica e a Itália sigam as pisadas da Grécia, da Irlanda e de Portugal, para que a Alemanha perceba que o seu interesse nacional, afinal, coincide com o interesse europeu?
Nessa altura poderá ser demasiado tarde. Mesmo para o poder da Alemanha. Teremos uma resposta, para o bem ou para o mal, nos próximos um a dois anos. Esperemos que a Europa lhe sobreviva. Caso contrário, seremos apenas aquilo a que a geografia nos destinou: uma península da Ásia onde durante milénios habitou, como disse um grande alemão, o filósofo Hegel, o "espírito do mundo" (Weltgeist).
Sem comentários:
Enviar um comentário