Ne Change Rien
Os contrastes de Pedro Costa.
Uma silhueta traçada por um fio de luz toma posição no escuro, no palco. Acompanhada pelos reflexos dos instrumentos, por outras silhuetas, de gente, e pela música que timidamente produzem, Jeanne Balibar interpreta “Torture”. O contraste entre a imagem, tão finamente delineada, pontilhada por suaves focos, e a reacção do público convoca o primeiro arrepio.
“Ne Change Rien” dá-nos, a cada momento, a beleza do contraste entre: o claro e o escuro, a repetição até ao limite e a criação musical, a insegurança e a solidez.
É através do claro-escuro, magnificamente trabalhado, que Pedro Costa nos mostra traços de Jeanne Balibar, a desempenhar o papel de “Jeanne Balibar”. Vemos a cantora a lutar contra os tempos da canção, a interiorizar o ritmo certo para colocar as palavras, por entre fios de luz que saem dos corpos e que a pouco e pouco acabam por compor a sala. O mesmo acontecendo com a música saída da guitarra deRodolphe Burger, ao envolver o absoluto silêncio do estúdio. Desta combinação nascerá uma canção, nascerá “Cinema” por Jeanne Balibar.
“Ne Change Rien” documenta a aprendizagem dura e lenta, o voltar atrás constante, a repetição necessária, o caminho entre o satisfatório e o sublime. O plano, sempre fixo, discreto, é como o olhar de um convidado que assiste ao ensaio. É esse o nosso papel enquanto privilegiados espectadores. Será mesmo o único papel a ser desempenhado durante os 97 minutos do filme. O processo de criação da música está envolto numa tensão permanente que uma oportuna gargalhada ajuda a aliviar, e que, assim, nos permite libertar a respiração. Quem já teve a oportunidade de estar presente num momento de criação, com amigos, na garagem na sala de ensaios ou no estúdio, irá reconhecer essa tensão e o prazer que daí advém. O esforço dos longos ensaios e das sessões de gravação culminam nas performances ao vivo em que saltam à memória as dificuldades vencidas, elevando assim a nossa satisfação e reforçando a cumplicidade.
As músicas, compostas por Rodolphe Burger, com letras de Pierre Alféri, são apresentadas a Balibar para lhes dar voz, permitindo-lhe no entanto alguma margem na interpretação. Deste processo criativo surge o outro elemento de contraste que se dá entre a insegurança da intérprete e a solidez dos músicos, com Rodolphe à cabeça; assim como do contraste entre as vozes, a dela e a dele, a primeira cheia de leveza e a segunda mais grave. Contrasta ainda a voz límpida de Jeanne Balibar com a electrónica usada nalgumas músicas.
Pedro Costa filmou a actriz Jeanne Balibar, durante cinco anos, no papel de cantora que também é, registando assim o seu percurso por entre ensaios e gravações para os álbuns de Rock/Electro/New Wave, os ensaios para a ópera bufa de Jacques Offenbach, “La Périchole”, aulas de canto lírico, e concertos com a banda que perfaz o elenco do filme. A cantora afirma ser este um dos mais belos filmes que fez. Não representou um papel e acabou por se aproximar paradoxalmente do ideal profundo do que é isso de ser actriz. O filme não resulta de um projecto estruturado previamente, mas sim da sua permanente invenção ao longo dos anos decorridos.
“Ne Change Rien” segue os passos de Jeanne Balibar. As imagens, no estúdio de ensaios e de gravação, combinam instrumentos e demais aparelhagem, sempre revelados pelo subtil brilho de algum ponto de luz reflectido, deixando à imaginação a sua parte não iluminada. Mostra o mínimo, para deixar sonhar o máximo. É nesta atmosfera de meia-luz que se vão descobrindo alguns detalhes no espaço envolvente. Um gato, outro, uma lareira discretamente acesa, um pano com xadrez a cobrir peças de mobília, bancos. O exterior à casa entra por uma janela, já quase fora do plano em que a cantora está perante o microfone. Estamos na fase de gravações. “Papéis” estudados, trabalho de tecelagem, manobrado com botões e rato. Surgem agora as canções quase completas, a tensão aumenta e os planos tornam-se mais diversificados e curtos. “Cinema” está quase. A festa surge no entanto ao som de outra faixa do álbum “Slalom Dame”. “ Ton Diable” é o tema ao som do qual assistimos ao descomprimir em jeito de celebração, por parte da banda.
O slalom de Pedro Costa passa ainda pelo Teatro onde Jeanne Balibar ensaia “La Périchole”. Aqui, a câmara coloca-se numa posição mais lateral, vista da quarta parede, ainda como um privilegiado espectador de ensaios, virada para a saída de cena. São as cenas mais iluminadas.
O ensaio de canto lírico tem um plano fechado sobre a cara da cantora, revelando todos os pormenores do seu esforço e do seu sofrimento. Mais duas frases e acaba a lição. Respirar fundo outra vez.
Há outro lugar a destacar; Tóquio. Pedro Costa acompanha a banda. Filma cenas profundamente japonesas, pela contemplação do momento, com o som em fundo, de um ensaio, antecedendo um provável espectáculo. Aqui também, o exterior entra discretamente na cena, reflectido no vidro de um adereço na parede.
“Ne change Rien” termina com a banda a aquecer vozes e mãos, num improviso instrumental de “Rose”, penúltima faixa do primeiro álbum de Jeanne Balibar, no qual “Torture” é a última.
Inserido no género do documentário musical, de que “ONE PLUS ONE” (1968) de Godard será referência, passa para além do retrato da banda, e do registo do nascimento de uma canção; no caso dos Rolling Stones “nasceu” Sympathy For The Devil”, tendo pelo meio um exercício artístico com mensagem política.
Em “Ne Change Rien”, seguimos exclusivamente os passos da actriz Jeanne Balibar na sua pele de cantora, com uma narrativa cheia de tensão, alimentada pela repetição obsessiva, e que culmina no luminoso contraste de sombras da cena inicial.