domingo, abril 11, 2004

ROSTO VAZIO, OSSUDO


estava a ler sendo de tempos a tempos incomodado pelo cheiro a mofo no barco, eram as cortinas. do lugar escolhido, perto da janela, podia contemplar um profundo horizonte. o rio vai calmo. o céu, carregado, deixa adivinhar um dia cinzento. hoje o desafio é maior. tentar sentir-me bem. a ponte que me passa para a outra margem aparece, distante, bem junto ao rio. desperta em mim a imagem de uma cerca que delimita uma quinta. os animais pastam, ondulando. fumegam.
aparece uma vendedora ambulante, vende pensos, pilhas, cola, tudo a cem. trás o borda-d'água também. será diferente? é o do ano 2000. não resisti ao barulho constante e embalador do comboio e adormeci. agora sinto-me sonolento. não aconteceu nada que me iluminasse o dia. a senhora que me serve o café da manhã estava especialmente bem disposta ao contrário do que afirmou. trago um elefante cor de rosa, com a minha cara, no casaco. estive no Nicola. agora és marca de café. ao menos é saboroso. atravessei a augusta. estava bastante deserta. parece que as saudades do velho chiado, agora renascido das cinzas, eram muitas. lembro-me de lá ter ido com a minha mãe. parecia um palácio onde tudo estava para venda. como se os seus donos estivessem falidos. não estava nada parecido.

"quando num grupo há um elemento estranho, o grupo fica mais unido".

sem grande dificuldade podemo-nos aperceber de que, no metro, as pessoas viajam de boca fechada, com os cantos da boca para baixo. como se acompanhassem ou sentissem o peso dos olhos, estes sempre baixos. é um cenário só por si deprimente. o sol por fim lá apareceu. aos soluços, por entre as nuvens. estou a forçar demasiado.

" certo é em mim a fome pelos livros".

em mim também. o kafka gostaria deste espaço. ali sentado não fui capaz de conter a vontade de escrever e libertei-me do embaraço. da exposição da world press photo escrevi aquilo que me ficou na alma. foram sete. queria que fossem seis. poderia excluir um mas seria difícil. que pessoa iria salvar? aproveitei e comprei um livro de pessoa.

andava há vários dias a pensar no número que me dizia algo. sempre tive esta imbecil mania de escolher números preferidos. há vários dias que era o número seis. esbarrei com um livro do stephan jay gould. foi a melhor conferência a que tive a felicidade de assistir. o livro aborda o tema do milénio. "o fascínio do millenium". deparei-me com uma relação temporal sobre o mundo em seis mil anos. " um dia para o senhor é como mil anos e mil anos como um dia". seis foram os dias que o "criador" levou a completar a sua obra. estranha coincidência. tinha reparado uns dias atrás que os três números do meu código postal são 623. - nem poderia ser de outra forma - disse na altura.

voltei ao sítio onde o chá é bom e a música é melhor. tenho a certeza de que kafka gostaria de aqui estar. seis dias após o meu aniversário, julguei estar enganado e não ter 27 mas sim 26 e alguns dias. estava enganado como é óbvio. o que eu não queria era de forma alguma encarar a realidade de estar a ficar mais velho. velho de mais. no entanto foram seis dias de verdade. sonhei com um cão azul. azul como as placas nas auto-estradas. azul com pequenas pintas brancas, só perceptíveis quando o agarrei. fiquei com a certeza de que há cores nos meus sonhos. aquele foi de certeza a cores. não pretendo de forma alguma contornar o kafkiano cerco que se aperta à minha volta. quero nele entrar. penetrar como a mão numa luva com medida exacta. no do Bocage já é difícil. apenas a viagem deste é certa.

 " rosto vazio, ossudo, que usava abertamente o seu vazio. quando me ia sentar olhei para ela, atentamente, pela primeira vez, na altura em que estava sentado já tinha dela uma opinião inabalável. a imagem do descontentamento que uma rua exprime, na qual toda a gente está a levantar um pé, numa tentativa para se escapar do lugar em que se encontra. é difícil sacudir-me, e no entanto estou inquieto. quando tarde eu estava deitado na cama e alguém, de repente, deu a volta à chave na fechadura, fiquei uns momentos com o corpo cheio de fechaduras, como se fosse num baile de máscaras, e com pequenos intervalos abria-se uma fechadura aqui e outra ali".


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